Uma certa doçura na maneira de falar, não esconde a mente reflexiva e precisa de Philippe Garrel, cineasta francês, nascido há 69 anos atrás, filho dos atores Maurice e Martine Garrel, que se encontrou muito cedo completamente enlaçado e imerso no universo do cinema.
Dono de uma voz singular que o tornou um dos cineastas mais importantes de sua geração, com mais de 30 filmes na bagagem, dirigidos e escritos por ele, Philippe Garrel está presente no Indie Festival através de mais uma de suas escolhas. Ele determinou pessoalmente quais filmes gostaria de exibir nessa retrospectiva, inédita no Brasil. Filmes que considera representar essencialmente sua vida e obra cinematográfica. Foram selecionados 22 filmes no total, sendo 3 curtas e 19 longas. E assim foi feita a sua vontade.
Philippe Garrel que cresceu em um meio extremamente artístico, influenciado pelo profundo gosto pelas artes cênicas através dos pais, entrou para o mundo do cinema autoral muito cedo, aos 16 anos quando fez seu primeiro curta-metragem, Les enfants désaccordés (Os jovens desajustados, 1964). Um cinema pós-nouvelle vague, declaradamente influenciado pelas ideias de Godard. No curta, já estariam ali os signos, ou os primeiros sinais, do que seria este cinema: um jovem, uma mulher, uma relação, a família, as questões sobre o amor e o tédio, uma revolução. A inspiração autobiográfica, a busca da quebra do naturalismo. O universo de Philippe Garrel é marcado pelo preto & branco, pelo silêncio mortal das entrelinhas, por uma música poética ou dramática, e pelo enigma que ilumina a metáfora feminina. E assim será desde sempre.
Há um consenso entre críticos e teóricos franceses (alguns com textos neste catálogo, como Thierry Jousse, Dominique Païni, Jacques Morice e Philippe Azoury) de que a obra de Garrel poderia ser dividida em dois grandes momentos. Na primeira fase marcadamente mais experimental teríamos os primeiros filmes, que ele mesmo, Garrel, denominaria como realizados nos “anos obscuros” de 1969 a 1979, sem recursos, de maneira mais underground, apoiado pelo grupo de amigos de uma geração que viveu intensamente o maio de 1968 na França.
Philippe Garrel fez parte de um grupo composto por jovens cineastas franceses chamado Zanzibar. Este grupo vivendo a forte repressão e os conflitos políticos de 1968 tinha como pulsão revolucionária a transformação do cinema francês. Queriam estabelecer uma relação entre a Nouvelle Vague - movimento ao qual não rejeitariam e seriam os herdeiros legítimos; e o cinema underground americano. Faziam parte do grupo, além de Garrel, Jack Raynal, Patrick Deval, Serge Bard, entre outros.
O curta Actua 1 (1968) que teve os negativos resgatados por Garrel recentemente, mostra um pouco desta volição coletiva pela liberalização da cultura e da política no momento dos conflitos de maio de 1968 que norteavam esses jovens diretores.
Mas aquilo que irá tornar o cinema de Garrel mais próximo de um cinema pós-vanguardista e ainda muito experimental é o seu modo próprio de concepção, realização e construção de uma narrativa nada convencional.
Durante este período e além, Philippe Garrel assinará trabalhos que irão se inspirar na radical liberdade de expressão, o aqui e agora do cinema de Godard, nos infinitos acordes de John Cale, nos portraits de Andy Warhol, nos baixos recursos do “do it yourself” com a ajuda de amigos, atores, belas atrizes que se propõem a encenar sem cachê e uma maneira própria de trabalhar com o acaso da filmagem e depois montar, ele mesmo, incansavelmente. Philippe Garrel parecia cultivar laços afetivos com familiares e amigos geniais de “alma” como o cineasta Jean Eustache (1938-1981), a cantora de voz incomparável, sua ex-mulher, Nico (1938-1988) e a musa de Godard, Jean Seberg (1938-1979), todos intensos e falecidos precocemente passaram a habitar seu imaginário.
Esta fase de total “livre pensar” é definida por ele até L’enfant secret (A criança secreta, 1979), considerado pelo próprio diretor um turning point em sua carreira, já que pela primeira vez trabalha com um roteiro definido antes das filmagens. A partir daí, como ele mesmo declara em entrevista, publicada aqui, ao escritor Philippe Azoury, era necessário conseguir financiamentos e a indústria demandava um roteiro escrito e uma postura mais profissional, mesmo para os diretores-autores como ele, Chantal Akerman e Werner Schroter.
Desta época, pré-L’enfant secret, se destacam Le révélateur (O revelador,1968), em uma narrativa fabulosa sobre um casal e uma criança em diversas situações e locações, uma história que se passa sem som algum; La cicatrice intérieure (A cicatriz interior, 1972) de seu trabalho seminal da fase de vida com a cantora Nico surge uma espécie de sci-fi indie experimental, em que a presença, a voz espetacular, a música e os dramas familiares em um deserto inóspito, são mortificantes; Les hautes solitudes (Altas solidões, 1974), um filme antológico, um ensaio, um poema com Jean Seaberg, Nico e Tina Aumont, sem som, desafia o espectador a fruir, faces dirigidas pelo olhar iluminado de Garrel (ver texto de Jacques Morice).
Mas se observarmos bem, o segundo momento da obra de Philippe Garrel que vem logo a seguir, durante os anos 1980 e 1990, e que a meu ver vai até Le vent de la nuit (O vento da noite, 1999), significa não um abandono da sua experimentação como diretor que participa de todos os processos, mas muito mais a profissionalização de seu método de trabalho experimental. Ou seja, Garrel em nenhum momento abre mão de suas escolhas estéticas ou conceituais de cinema, apenas consegue torná-las adaptáveis a um sistema que começa a entender como “industrial”.
Nesta fase dos 1980-1990, vive ainda mais intensamente no set de filmagem como o cerne de um seio familiar. Sempre foi assim, ligado subjetivamente a família e filhos. A vida e a arte estão coladas. Dirige o seu pai Maurice Garrel (1923–2011), ator magnífico, apreende com ele as referências seminais do teatro e os métodos de Dullin e Stanislavski. Maurice está desde muito cedo ao lado do filho, participou dos curtas Les enfants desacordées, Anémone, Droit de visite e dos longas Marie pour memoire, Liberté, la nuit, Les baisers de secours, Les amants réguliers, Un eté brûlant. Dirige também sua ex-companheira e mãe de seus filhos a atriz (futura diretora) Brigitte Sy, e os filhos Louis Garrel e Esther Garrel. As crianças crescem fazendo cinema com o pai. Louis Garrel tem apenas 5-6 anos ao interpretar o filho do casal em Les baisers de secours.
Desta segunda fase, em que o experimentalismo de Garrel ganha o peso do seu método narrativo, destacam-se Liberté, la nuit (Liberdade, a noite, 1983) com Emmanuelle Riva e Maurice Garrel, Elle a passé tant d'heures sous les sunlights (Ela passou algumas horas sob a luz do sol, 1985) com Mireille Perrier e Jacques Bonnaffé (ler aqui texto de Dominique Païni) e La naissance de l’amour (O nascimento do amor, 1993) com o amigo Jean-Pierre Léaud, Johanna ter Steege e Lou Castel. Filmes norteados pela busca de uma precisão na direção dos atores (Liberté, la nuit e La naissance de l’amour), mas que ao mesmo tempo se fazem incompletos e metalinguísticos, às vezes com a presença do próprio diretor que aparece de maneira ambígua como ator-diretor (Elle a passé tant d'heures sous les sunlights). Garrel é em si familiar a seus próprios filmes, está sempre onipresente, autobiográfico, em busca de uma certa imagem reflexiva mas cheia de sombras.
Le vent de la nuit e Sauvage innocence (Inocência selvagem, 2001) representam um marco divisório no que poderíamos considerar o terceiro momento do cinema de Philippe Garrel. Em Le vent de la nuit, Catherine Deneuve interpreta uma mulher burguesa, rica, apaixonada e entediada contracenando com Daniel Duval e Xavier Beauvois, que saem em um espécie de roadmovie entre Nápoles, Paris e Berlim. Garrel parece alcançar um outro patamar de financiamentos para seu filme, graças a sua persistência profissional e a grandeza de uma estrela como Catherine Deneuve. Já em Sauvage innocence, o retrato de um cineasta apaixonado (Mehdi Belhaj Kacem) que precisa de dinheiro para produzir seu novo filme, contra a heroína, e que literalmente acaba se vendendo em um esquema de tráfico de drogas para o produtor (o grande Michel Subor, o pequeno soldado de Godard) para conseguir o dinheiro.
A partir de Os amantes constantes (2005) o cinema de Philippe Garrel parece estar mercadologicamente consolidado. Seus filmes começam a ser distribuídos no Brasil e assim sucessivamente serão lançados A fronteira da alvorada (2008), Um verão escaldante (2011), O ciúme (2013), e os ainda inéditos, À sombra de duas mulheres (2015), L’amant dun jour (2017).
De fato este cinema se consagra por sua persistência e dedicação e por fazer de suas características narrativas um estilo único. Os filmes contam incessantemente uma história sobre um homem, uma mulher, uma paixão, alguns amores entrecruzados, mas sempre sobre o ponto de vista de um narrador neutro, um olhar um tanto desacreditado, mas preciso. Os filmes continuam em preto & branco, com poucas exceções, os planos continuam longos e as tomadas abertas, os atores melancólicos, continuam tendo um grande espaço para atuar. Garrel sob forte influência de Freud e Lacan, fala da incomunicabilidade que percebe entre homens e mulheres, e se sente capaz de expor estas pequenas fissuras, mesmo sabendo que seu olhar (masculino) fará uma quebra no “real” (aqui no sentido lacaniano) do olhar feminino.
Philippe Garrel não me parece um fetichista, não como todo cineasta potencialmente pode chegar a ser. É mais generoso, delicado, e observador nas suas escolhas. Suas personagens mulheres são de fato enigmas. Para Garrel, não interessa muito a realidade, o espontâneo, mas aquilo que inventa, aquilo que falseia sobre esse outro. Parece interessado em construir, destruir e reconstruir uma história quase universal sobre o amor. Sobre o encontro, a dor, o sofrer, mas sempre colado em uma narratividade fragmentada, que rompendo com certa naturalidade gera sempre e para sempre estranhamentos. Todos os casais de Garrel são sínteses de uma possível separação que nem sempre se dá, mas que revela o quanto o alicerce do amor está na ausência. Para Garrel o diretor é o maestro, este que mostra o caminho aos atores, como dizia Lacan, um “sujeito suposto saber”. E como faltam certezas nas histórias, ou na vida dos personagens, estas sobram nas mãos desse grande diretor.