RETROSPECTIVA PHILIPPE GARREL > TEXTOS
Duas solidões em silêncio: Garrel e Seberg*
O homem atravessa sozinho a capital. A pé ou de metrô. Ele se dirige à casa de uma atriz, carregando sobre o ombro uma câmera de 35 mm e um tripé de madeira. Ele completa esse trajeto durante toda uma estação. De dois em dois dias aproximativamente. Todas as vezes, ele toca a campainha da casa dela, um apartamento luxuoso do sétimo distrito em Paris. Eles se sorriem pelos olhos. Ela se retira para se aprontar no cômodo ao lado, se maquia ou não. Em seguida, eles saem. Segundo o humor deles, perambulam pelas ruas, se precipitam em cafés, exploram os jardins ou se confinam em um quarto de hotel, perto do Quai Voltaire. Juntos, eles imaginam sumariamente as cenas. Ela se concentra e o homem dispara a câmera. Enquanto o motor ronrona, eles falam de tudo e de qualquer coisa, de coisas fúteis ou íntimas. Ninguém os incomoda ao redor. As pessoas quase não percebem que um filme está sendo rodado, porque não há equipe, nem técnicos, nem ensaios. O filme não-sonoro se intitula Les hautes solitudes. É um documentário sobre a face de Jean Seberg. Philippe Garrel a vasculha tão profundamente, a enquadra de tão perto que se torna uma infinidade de coisas. Um sentimento, uma paisagem, uma outra parte do corpo (um sexo talvez). É uma história sonhada e dispersa de duas solidões que se entreolham. Se excluirmos algumas raras cenas com Tina Aumont e Laurent Terzieff, o filme se faz unicamente a dois. Garrel recolhe à medida que o filme avança a película (composta frequentemente de sobras) necessária para continuar a rodar. Ele visita todas as vezes cinco ou seis produtores sobre os quais ele pode contar. No final, o filme custa 42 000 francos. Ele estreia no outono em uma sala do Marais e fica um mês em cartaz. Nove mil pessoas vão vê-lo. É pouco e é muito. Com Les hautes solitudes, Garrel quer provar preto no branco que o cinema não é obrigatoriamente reduzido ao capitalismo, que um filme pode ser montado pelo preço de um fusca, sem nada conhecer ou quase nada da técnica. Basta improvisar: assim ele abre o diafragma completamente, se dizendo que haverá sempre rastros. Ele procede assim por cada sequência sem jamais ter a possibilidade de verificar. As bobinas só serão vistas durante a montagem final, no verão seguinte. Como por encanto, a bela face de Seberg aparece.
Este filme pertence inteiramente ao campo do cinema e da vanguarda artística. É muito mais raro do que se pensa. Nesta categoria, só encontramos, digamos, Warhol. Aliás, Garrel viu Chelsea girls com Nico, pouco tempo antes. Ele descobre então que tudo é permitido, que o cinema pode se fazer só e livremente, como a literatura e a pintura. Ao realizar Les hautes solitudes, Garrel cria uma obra de arte que não é narrativa (não se trata de Epstein nem de L’herbier, nem mesmo Out one de Rivette) mas que também não se trata do cinema “plástico“ (um cinema de formas abstratas ou desencarnadas, digamos, à maneira de Léger ou de Moholy-Nagy).
Se Les hautes solitudes entrelaça a performance artística e o cinema, evidentemente é porque existe Seberg e não uma iniciante. Garrel teve essa ideia genial de fazer um filme totalmente “underground “com uma atriz imensa, uma figura marcante do cinema, ao mesmo tempo uma estrela americana (Seberg atuou em Saint Jeanne de Preminger ) e musa da Nouvelle Vague. Assistindo à atuação incrível de Seberg (herdada do Actor’s studio) e a geografia mutante de seu rosto, lemos de uma maneira subjacente uma história do cinema, na qual se superpõem as imagens de Lilian Gish, Falconetti, Anna Magnani.
Garrel relata que ele nunca ficou tão impressionado com uma atriz. Prova disso, nesse dia de fevereiro de 1974, onde ela lhe propõe filmar o seu próprio suicídio. Eles se entenderam. Estava previsto que ela se deitaria de camisola na cama e que engoliria uma série de barbitúricos. Passado um lapso de tempo, ela simulará uma dor muito intensa na barriga e os gritos dela assustarão Tina Aumont, presente no quarto ao lado. Eles rodarão a cena. Mas no momento em que Seberg se contorce de dor, Garrel fica completamente em pânico, solta brutalmente a câmera e pula em cima dela, prevendo o pior. A reação de Seberg foi imediata; furiosa, ela lhe repreende violentamente: “Mas o que houve com você? Você está completamente louco! Você estragou a cena!”
No filme, um véu branco corta abruptamente a ação.
Jacques Morice**
* Artigo originalmente publicado na revista Cahiers du Cinéma #Special 100, Hors Série #19, em janeiro de 1995. Publicação autorizada e gentilmente cedida por Jacques Morice.
** Jacques Morice é jornalista e crítico francês. Começou sua carreira escrevendo para Cahiers du Cinema e Inrockuptibles. Colunista por 20 anos da Beaux-Arts Magazine, é jornalista permanente há 15 anos na revista Télérama, seu blog Mon beau casting está no site da revista. É autor do livro Maurice Garrel, le veilleur (2012).