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RETROSPECTIVA PHILIPPE GARREL > TEXTOS
 

Philippe Garrel, o profeta e o escriba*

Philippe Garrel surgiu precocemente de uma maneira intempestiva no cinema como uma espécie de criança perdida da Nouvelle Vague e da poesia moderna. Seu primeiro curta metragem, Les enfants désaccordés (1964), coloca dois adolescentes rimbaldianos em uma fuga iniciática em busca da utopia, fato inexplicável aos olhos da sociedade sob De Gaulle, paralelamente aos discursos de um punhado de adultos filmados come se fossem falsas entrevistas de televisão. Imediatamente, Garrel, jovem desajustado, como seus dois heróis, parte à procura de uma nova linguagem, de uma nova língua que atravessa tanto encadeamentos de posturas inéditas, palavras reinventadas, quanto figuras de estilo impetuosas – descontinuidades na montagem, conexões irracionais, narração com lacunas, silêncios e gritos, mudanças espontâneas de assunto... Seguindo o olhar dessa liberdade conquistada, o ponto de vista da sociedade, enquadrado pela pequena tela da televisão, aparece como de fato é, quer dizer, uma série de clichês, com exceção do discurso de Maurice Garrel, pai do cineasta e desde já figura tutelar de seu cinema, preso na ambiguidade, pré maio de 1968, de um discurso ao mesmo tempo compreensivo e impotente.

Após essa formidável primeira tentativa, nunca mais a sociedade se expressará, como se as palavras congeladas através das quais se exprimia estivessem definitivamente datadas, como se a conquista da liberdade, que é também aquela de um sentido que escapa à estrita evidência de um suposto bom senso das palavras e imagens, a tivessem rechaçado para fora do cinema de Garrel. Portanto, é preciso se resguardar ao simplificar a experiência. Essa aspiração de mudar o cinema, mudando a vida, viver o cinema além de todas as limitações é, desde Marie pour memoire (1967), o primeiro longa de Garrel, impedida, travada e minada no seu interior. Marie pour memoire, filme que deve muito a Godard e ao qual Godard deve muito, é uma síntese de palavras e gestos – palavras e gestos se confundindo frequentemente – que explode pouco antes de maio de 1968. Slogans, glossolalias, silêncios, monólogos interiores e exteriores, contos, gritos, sussurros, recusas, sonhos, repetições, crises de risos, jet lag, rituais, interrogatórios, a palavra-gesto é então captada em todos os estados, instaurando uma brecha na comunicação que é também a desmesura do tédio, do social, da psicanálise, da política mesmo. Nessa época, a palavra como o cinema são para Garrel intransitivos, ou seja, uma substância irredutível à codificação dos sentidos. Os sujeitos, corpos e língua, são atravessados por esta palavra intransitiva que os transformam mediunicamente em uma experiência muito singular. O que se chamou de cinema de poesia, ou o cinema como experiência herética, para retomar os termos de Pasolini, e do qual Garrel é um dos aventureiros mais audaciosos. Mas, ao mesmo tempo que ele desdobra em metamorfose essa palavra-cinema, Garrel revela sua parte sufocada, a incapacidade que traz consigo mesmo em encontrar o seu destino, sendo ela tão misteriosa, e principalmente, o risco de sua perda, de sua dissolução, de sua destruição, através da loucura, o nonsense, a afasia.

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Thierry Jousse**

* Artigo originalmente publicado na revista Cahiers du Cinéma #533, em março de 1999. Publicação autorizada e gentilmente cedida por Thierry Jousse.

** Thierry Jousse é crítico e realizador francês. Foi editor da Cahiers du cinéma entre 1991 e 1996. Dirigiu os longas Je suis un no man's land (2010) e Les invisibles (2005); e os curtas Julia et les hommes (2003), Nom de code: Sacha e Le jour de Noël (1998). Também escreve sobre música para revistas e colabora com programas de rádio.