RETROSPECTIVA PHILIPPE GARREL > TEXTOS
A experiência dos limites e a incompletude nos primeiros filmes de Philippe Garrel*
Os primeiros filmes de Philippe Garrel são justaposições de fragmentos. Garrel guarda uma relação íntima com a incompletude, mas de uma maneira contraditória. Seus princípios de filmagem repousam sobre um esgotamento das possibilidades materiais e temporais da película, sobre uma experiência dos limites. Trata-se de uma vontade de esgotamento daquilo que pode ser registrado na duração, determinada pelo carregamento “mecânico” do rolo**, e no que concerne à luz, na sensibilidade natural da película. Uma impressão de incompletude emana desses procedimentos. No seu filme, Ele a passé tant d’heures sous les sunlights (1985), ele deixa na sua montagem definitiva, as claquetes de início e os gritos de corta (cut !) sonoros de fim de plano.
Esse princípio de esgotamento, impulsiona Garrel a mostrar a totalidade daquilo que foi rodado, remetendo assim o filme definitivo a uma singular sucessão de bobinas provisórias. Nada, em um filme de Garrel, chega a constituir uma totalidade rígida, uma massa, e, no entanto, tudo parece interligado por articulações leves e móveis cujos pivôs não são objeto de uma atenção particular do cineasta. Se há uma lógica entre as diferentes sequências, nos momentos dramáticos, é uma lógica interior, a de Garrel, que só se impõe poeticamente para o espectador pela profunda sinceridade afetiva do cineasta, uma espécie de falta de pudor dos sentimentos, dispensando o recurso de uma pontuação clássica, ou de “quedas” dramáticas que teriam por função fechar e articular harmoniosamente e habilmente cada sequência.
Essa característica do cinema de Garrel não deixa de provocar uma sensação de incapacidade, que remete a um estado da infância, por conseguinte de incompletude. Essa relação da incapacidade e da infância é tão evidente para Garrel que numerosos filmes seus são ficções duplamente atravessadas pelo desejo da infância (e da criança: Le Revelateur) e sobre o questionamento das origens do cinema. Cada filme de Garrel é inacabado porque ele tenta traduzir um constante “maravilhamento” diante do milagre do fato cinematográfico apenas comparável ao “maravilhamento” do nascimento de uma criança. Essa magia recriada perpetuamente no momento de cada plano, dispensa Garrel da preocupação com um acabamento ficcional. Assim como a matéria da película, essa magia devora a ficção. É a razão pela qual Jean Douchet pôde evocar a autofagia do cinema de Garrel.
Nesse sentido, Philippe Garrel é um cineasta cruel, inclusive no que diz respeito a parte material de seu próprio filme. O espectador fica incomodado porque sente algumas faltas no interior de seus filmes, mesmo sendo isso parte de sua conduta. Trata-se frequentemente em Garrel de faltas oriundas do descompasso entre a linearidade de suas narrativas e as aparências desordenadas da realidade. O espectador se sente desconfortável pois esse descompasso é resolvido por elipses narrativas audaciosas (como em Antonioni) ou sob a forma pura e simples de lacunas narrativas que sugerem uma “incapacidade” - lacunas que provocam uma impressão de negligência aos olhos do espectador. É de fato a leveza poética suplantando a gravidade romanesca.
Dominique Païni***
* Artigo originalmente publicado na revista Cahiers du Cinéma #375, em outubro de 1985, reescrito pelo autor em julho de 2017. Publicação autorizada e gentilmente cedida por Dominique Païni.
** Nota da tradução : A palavra chargeur (carregamento) faz referência ao dispositivo mecânico do rolo de película que pode determinar também sua duração.
** Dominique Païni é teórico, crítico e curador francês. Diretor-fundador das produções audiovisuais e cinematográficas do Museu de Louvre de 1987 a 1991, diretor da Cinemateca Francesa de 1991 a 2000; diretor de desenvolvimento, de 2000 à 2005, no Centre Georges-Pompidou onde realizou exposições de Roland Barthes, Samuel Beckett, Hitchcock, Jean Cocteau e Jean Luc Godard. Escreveu diversos artigos para Art Press e Cahiers du cinéma e autor de livros como Le temps exposé: Le Cinéma de la salle au musée (2002).